Valor Econômico, Opinião, p. A13 - 07/11/2017
Com fogo não se brinca
Queimadas e incêndios representam a fonte principal de contribuição do país para o aquecimento global. Evitar e combater as queimadas nos parques e reservas nacionais é essencial para preservar a biodiversidade e reduzir o aquecimento global
Jussara Utsch
São cada dia mais alarmantes os números dos relatórios diários do Programa Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que monitora focos de incêndios em áreas florestais do Brasil por satélites.
Setembro foi especialmente crítico, com a maior incidência já registrada nesse período do ano: 95.046 focos, ante 94.516 em setembro de 2007. De acordo com os relatórios do Inpe, o acumulado de janeiro a outubro de 2017 corresponde a mais de 214 mil focos e supera o total dos 12 meses do ano passado.
Esta situação crítica afeta todos os biomas brasileiros, especialmente Amazônia e Cerrado. O Pará é o Estado com maior número de queimadas registrado até outubro. No Amazonas, o fogo atingiu 35 mil hectares do Parque Nacional dos Campos Amazônicos e da Terra Indígena Tenharim Marmelos. Em Mato Grosso, ocorreram três incêndios dentro de Unidades de Conservação (UCs), um deles na Chapada dos Guimarães que obrigou o fechamento de pontos turísticos como o Circuito das Cachoeiras. No último ano o fogo e o desmatamento destruíram quase 6.000 km2 na Amazônia e ainda mais no Cerrado, que já perdeu metade de sua área verde original.
Segundo o Inpe, mais de 90% dos incêndios são causados por negligência ou eventos intencionais. O fogo é o caminho mais fácil para converter uma área em pasto ou plantio. Faz parte do ciclo de expansão da fronteira agrícola e é admitido desde que empregado de forma controlada e em locais permitidos. No entanto, o que se tem visto é a utilização de forma indiscriminada, em áreas protegidas.
Por onde passa o fogo deixa um rastro de destruição: desmatamento, prejuízos financeiros e materiais, perda de espécies da fauna e da flora, degradação do solo e até problemas de saúde para a população. Não bastasse tudo isso é preciso contabilizar também o impacto no aquecimento global. Dados do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG) mostram que incêndios florestais e desmatamentos contribuíram com 51% do total nacional de emissões desses gases entre 1990 e 2014. Com a ratificação do Acordo de Paris, o Brasil assumiu o compromisso de cortar as emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2025, e em 43% até 2030. Deste modo o combate aos incêndios florestais deveria ser considerado estratégico, porque é a maneira mais rápida e efetiva de combater as mudanças climáticas.
Apesar da assombrosa quantidade de emissões de CO2 oriundas dos incêndios florestais, as ações para lidar com as mudanças climáticas no Brasil ainda são insuficientes. Devido, em parte, a um clima político e econômico desafiador, os recursos para combater incêndios em áreas de proteção foram drasticamente reduzidos, limitando o alcance do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) e a atuação dos seus técnicos. Na prática, a ação governamental mais visível é um calendário de emergência ambiental, que beneficia localidades específicas com medidas como a facilitação da contratação de brigadistas temporários.
É como tentar apagar uma gigantesca fogueira com um sopro infantil. Tratar do problema considerando a sua real dimensão exige medidas estruturantes e investimentos. Para se ter uma ideia de valores, convém verificar o que se passa nos Estados Unidos. Neste ano, os gastos em combate a incêndios florestais ultrapassaram US$ 2 bilhões, cifra nunca antes registrada e que preocupa as autoridades locais pela escalada dos custos. Em 1995, só 16% do orçamento do Serviço Florestal do país eram suficientes para bancar a prevenção e o combate a incêndios; em 2015, o fogo passou a consumir 52% da verba e a previsão é de que chegue a 67% no prazo de oito anos.
As tragédias recentes na Califórnia e na região da Leiria, em Portugal, deixam claro que incêndios florestais devem ser levados muito a sério. Felizmente, apesar do aumento das ocorrências no Brasil, não tivemos casos com a mesma gravidade. Ainda temos a oportunidade de evitar situações piores, o que requer uma nova estrutura de governança florestal para a prevenção e o combate aos incêndios em UCs e outras áreas suscetíveis no Brasil com base em critérios científicos e técnicos, assegurando recursos financeiros e humanos, além de capacidade logística de apoio a equipes especializadas, para que consigam chegar até os locais dos incêndios em, no máximo, 24 horas. O novo modelo de governança deve contemplar o pleno engajamento das populações para participação em ações preventivas e parcerias nacionais e internacionais, envolvendo o poder público e a sociedade civil, principalmente cientistas, ONGs e universidades.
Este caminho, perfeitamente viável, constitui a essência do ClimaFund Brasil, idealizado pelo Instituto Sustentar de Responsabilidade Social para ser uma estrutura de governança com foco no combate aos incêndios em parques e outras áreas suscetíveis no Brasil, contribuindo na mitigação das mudanças climáticas globais pela redução das emissões de gases de efeito estufa - incluídas emissões de CO2 e metano.
E como financiar isto? Os recursos para financiamento das ações de prevenção, mitigação e capacitação no combate aos incêndios serão originados de uma combinação de fundos, sendo o endowment a modalidade principal. Este tipo de fundo consiste na captação de recursos para criação de um patrimônio perpétuo, cujos rendimentos poderão ser utilizados continuamente para as atividades a serem desempenhadas.
Países como Peru, México, Equador e Costa Rica já possuem fundos como este operando em prol da conservação da natureza, instalados em uma época em que a prioridade era a proteção da biodiversidade. Hoje, sabemos que se não reduzirmos a emissão de gases de efeito estufa, o aquecimento global trará prejuízos irreversíveis ao meio ambiente.
O Brasil abriga a maior biodiversidade do planeta, grande parte da qual se encontra nos parques e reservas nacionais. Queimadas e incêndios representam a fonte principal de contribuição do país para o aquecimento global. Sendo assim, evitar e combater as queimadas nos parques e reservas nacionais é essencial para reduzir o aquecimento global, garantir o sequestro de carbono e preservar a biodiversidade.
Jussara Utsch é presidente do Instituto Sustentar de Responsabilidade Socioambiental.
Valor Econômico, 07/11/2017, Opinião, p. A13
http://www.valor.com.br/opiniao/5184011/com-fogo-nao-se-brinca
Florestas:Queimadas
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