Cheias e queimadas em região preservada indicam ameaça de mudança climática à Amazônia

FSP - https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima - 15/01/2022
Cheias e queimadas em região preservada indicam ameaça de mudança climática à Amazônia
Em reserva extrativista entre Amazonas e Roraima, floresta pode virar savana e caça coloca tartarugas em risco

Fabiano Maisonnave
Correspondente da Folha para a Amazônia, sediado em Manaus. No jornal desde 2001, foi correspondente em Campo Grande (MS), Washington, Caracas e Pequim. Em 2015-16, foi bolsista da Fundação Nieman para o Jornalismo, na Universidade Harvard
15 jan, 2022


[RESUMO] A centenas de quilômetros da frente de desmatamento da Amazônia e cercada de outras unidades de conservação, reserva extrativista na divisa de Roraima e Amazonas vem sofrendo incêndios e enchentes de proporções inéditas. Negligência de órgãos ambientais federais se soma à crise climática, agravando a situação de ribeirinhos e criando o risco de desaparecimento de tartarugas.

Acessível apenas de barco, longe das cidades, habitada por algumas dezenas de famílias de ribeirinhos e cercada por outras áreas protegidas, a Resex (Reserva Extrativista) Baixo Rio Branco-Jauaperi está no meio de uma das regiões mais preservadas da floresta amazônica.

Apesar de centenas de quilômetros distante das frentes de desmatamento, são inúmeras as árvores mortas que despontam das águas escuras da várzea inundada pelo rio Jauaperi, afluente do rio Negro que marca a divisa entre os estados de Roraima e Amazonas.

A cena lúgubre, que soma alguns quilômetros de floresta destruída em dois pontos distintos da Resex, lembra os "paliteiros" presentes em reservatórios de usinas hidrelétricas, como a de Belo Monte, sobre o rio Xingu, no Pará.

A causa da mortandade, porém, é outra. A vegetação nesses dois trechos foi destruída, no início de 2016, por incêndios de extensão e intensidade inéditas -na época, a região atravessava a maior seca de que os ribeirinhos têm memória.

Por outro lado, a água que alagava as várzeas do Jauaperi no início de dezembro, quando a reportagem da Folha visitou o local, é reflexo da maior enchente em pelo menos um século.

Em meados de 2021, as casas das comunidades mais baixas, assim como roças e plantas frutíferas "foram pro fundo", na linguagem local. Em alguns pontos, a alagação da floresta de terra firme matou árvores que não sobrevivem muito tempo submersas, incluindo castanheiras.

Esses dois eventos extremos, separados por um intervalo de cinco anos, reforçam as projeções de que as mudanças climáticas são uma ameaça crescente para a maior floresta tropical do mundo.

Entre 2015 e 2016, a seca foi provocada por um "super El Niño", um dos mais fortes já registrados, ao lado dos de 1982 e 1997. O fenômeno, provocado pelo aquecimento das águas do Pacífico, teve repercussão global e causou desde um número recorde de ciclones tropicais na região do Havaí até a maior elevação anual de dióxido de carbono na atmosfera já registrada.

"É como um gigante tocando um sino tão alto que derruba os pratos das estantes na casa do final da rua", sintetiza uma análise da Noaa (agência norte-americana do oceano e da atmosfera).

No rio Negro, os impactos também foram sem precedentes. O ecólogo Bernardo Flores, pós-doutorando na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), calculou que, na região de Barcelos, vizinha à Resex, foram destruídos 70 mil hectares de floresta de igapó, nome dado ao ecossistema alagável que cresce às margens dos rios de água preta.

O tamanho da área consumida pelas chamas, equivalente ao município de Florianópolis, é ainda mais impressionante se comparado com o fato de que, ao longo dos 40 anos anteriores, o fogo havia atingido apenas 10 mil hectares na mesma região.

"Eu acredito no risco de queimar quase tudo", afirma Flores, em conversa por telefone. "Os El Niños estão ficando mais amplos e frequentes. A tendência é de, em breve, ter um El Niño mais forte que o de 2015."

Flores explica que, mesmo inundado durante parte do ano, o igapó é vulnerável ao fogo por acumular muita matéria orgânica, que se transforma em combustível no período seco.

O ecólogo diz que a regeneração do igapó é lenta e que, caso a mesma região queime duas vezes, a floresta dará lugar a uma campina, com espécies típicas da savana nativa amazônica, comum em várias regiões de Roraima.

Essa avaliação é corroborada pela experiência dos ribeirinhos. "Depois do fogo, não se recupera mais da forma como era. Cresce mais embaubeira, cria tiririca, aquele cipó que impede outras plantas nascerem. No tempo dos meus pais, um vizinho jogou uma baganha de cigarro e queimou um pedaço. Tem 45 anos e agora está começando a crescer, mas ainda tem muita diferença para chegar ao porte da floresta nativa", afirma Francisco Parede de Lima, 54, presidente da Associação dos Artesãos e Extrativistas do Rio Jauaperi (AARJ).

Já a cheia recorde de 2021 foi provocada pelo La Niña. Ao contrário do El Niño, é um fenômeno causado pelo resfriamento das águas do Pacífico e, na Amazônia, provoca chuvas acima da média. Em Manaus, o rio Negro atingiu o nível mais alto desde o início da medição, há 119 anos.

Na comunidade Tanauaú, por exemplo, só 2 das 17 casas escaparam da enchente. Alguns se mudaram para áreas mais altas, outros passaram a morar em barcos. "A alagação durou três meses. Durou muito tempo. Geralmente, só passamos um mês alagado aqui", diz o ribeirinho Alberto Oliveira, 45.

A perda das roças foi compensada por cestas básicas. O principal doador foi o empresário de turismo Ruy Tone, que as distribuiu três vezes pelas 25 comunidades, das quais só três não foram "pro fundo". Houve também ajuda do CNS (Conselho Nacional dos Seringueiros) e, por último, do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).

Em situações de emergência ou não, a presença do poder público é escassa. Assim como o Estado não contém o aumento do desmate (ou o "potencializa", como admitiu o presidente Jair Bolsonaro em 2019), quase nada se faz para mitigar os efeitos da crise climática na floresta amazônica.

Via assessoria de imprensa, o ICMBio informou que o processo de criação do conselho consultivo da Resex foi aberto em 2021 e que depende das restrições impostas pela pandemia da Covid-19. O órgão informou que, em 2020, servidores e brigadistas lotados em Novo Airão foram capacitados em prevenção e combate a incêndios florestais.

A Resex Rio-Branco-Jauaperi é uma das regiões que sofrem com esse descaso. De responsabilidade federal, foi a última unidade de conservação criada na Amazônia, em junho de 2018, no governo Michel Temer (MDB). Quase quatro anos depois, está sem conselho deliberativo e plano de manejo e não conta nem sequer com ribeirinhos treinados como brigadistas.

A demanda para a criação da Resex foi formalizada pelos ribeirinhos em 2001, mas o trâmite se arrastou durante os anos seguintes devido à oposição encabeçada pelo governo de Roraima, que chegou a criar uma APA (Área de Proteção Ambiental) estadual na mesma região. Trata-se da categoria de unidade de conservação de mais baixa proteção, que permite desmatamento e propriedade privada.

No entanto, uma mudança trazida pelo Código Florestal, em 2012, mudou a posição da classe política de Roraima, vinculada ao agronegócio, à madeira e ao garimpo.

Caso um estado amazônico tenha mais de 65% do território ocupado por unidades de conservação e terras indígenas, o percentual de área de mata nativa preservada por lei diminuirá de 80% para 50% nas propriedades privadas.

Nesse cálculo, a criação da Resex, paradoxalmente, pode em breve contribuir para que fazendeiros de Roraima desmatem para produzir carne, soja e outros produtos agropecuários.
Tartarugas sob ameaça

Com os órgãos ambientais ainda mais enfraquecidos sob Bolsonaro, a Resex está vulnerável à pesca predatória e à caça de quelônios, atividades ilegais que empregam parte dos ribeirinhos, fonte recorrente de conflitos internos.

Para tentar recuperar a reduzida população de quelônios, a AARJ mantém há dez anos um projeto pelo qual a associação paga uma rede de ribeirinhos para vigiar as praias de desova, coletar os ovos e depois soltar os filhotes. O projeto, que hoje abrange sete praias, é financiado por doações privadas.

Em dezembro, a reportagem acompanhou o trabalho da associação, a bordo de uma embarcação de 15 metros movida por um motor fabricado em 1963. Com uma velocidade não maior do que 7 km/h, foram precisos seis dias para visitar todas as comunidades do projeto. A distância de Novo Airão, o ponto de partida, até a Resex é de cerca de 250 km.

No barco, além de Lima, estava o escocês Paul Clark. Ele se mudou para o Jauaperi nos anos 1990 junto com a mulher, a italiana Bianca. Fundaram uma escola para os ribeirinhos, tiveram dois filhos e deram início ao projeto de proteção dos quelônios, além de participar da AARJ, onde ele atua como vice-presidente.

Neste ano, o trabalho dos praieiros foi prejudicado pelo nível elevado do rio, que encobre boa parte das praias, inviabilizando a desova das tartarugas. Pelo segundo ano consecutivo, a região está com chuvas acima da média, novamente devido ao fenômeno La Niña.

O maior problema, contudo, é a falta de fiscalização por parte dos agentes ambientais. Desde 2018, o ICMBIo realizou apenas três operações. Sem vigilância, é comum a caça indiscriminada das quatro espécies de tartaruga da região. Elas depois são vendidas em Novo Airão e Manaus, onde a carne de tartaruga é muito apreciada.

"É meio frustrante dizer que você está lutando, suando a camisa para fazer algo para uma pessoa que está só destruindo", diz Lima. "A gente tenta salvar o máximo de quelônios para soltar na natureza, e os caras vão tirando. Já houve comentários: 'Ora, vocês estão criando, e a gente vai pegando, agora vai equilibrar'. É uma piada desagradável."


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