Apresentada como um dos principais projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, a transposição deve ter parte de suas obras concluídas até o final deste ano, prometendo levar água para 12 milhões de pessoas na Paraíba, no Ceará e no Rio Grande do Norte.
Antes mesmo do começo das obras, porém, organizações populares já alertavam que o intuito da transposição é disponibilizar água para projetos de irrigação e produção de crustáceos em larga escala, favorecendo o agronegócio e o mercado internacional.
Se a resistência popular teve seu momento mais forte com o jejum do bispo de Barra (BA), Dom Luiz Cappio, no final de 2007, o endurecimento das comunidades contra a transposição deve crescer à medida em que os impactos ficarem mais evidentes e as promessas de melhorias não forem cumpridas.
A avaliação é do integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Roberto Malvezzi, o Gogó. Em entrevista concedida ao Brasil de Fato durante o VII Encontro Nacional da Articulação no Semiarido Brasileiro (EnconASA) em Juazeiro (BA), no final de março, Gogó falou sobre o andamento das obras da transposição e as consequencias do empreendimento para a região.
* Qual a situação atual das obras de transposição do rio São Francisco?
A transposição tem sua obra em andamento. O governo acelerou o processo de construção dos dois canais e fala que vai concluir um [deles] até o final desse ano, o chamado [canal] "eixo leste", que põe água diretamente na Paraíba, e que o outro seria concluído em 2012. Olhando assim, objetivamente, eu acho que o governo está fazendo um bom marketing. Penso que as obras estão muito mais atrasadas e que, mesmo que avancem, eles [governo] ainda vão demorar bastante tempo para fazer o "eixo leste".
* Até esse momento, que impactos são sentidos na região em decorrência dessas obras?
Os canais têm um impacto ambiental direto, que você vê logo, na destruição da caatinga, porque eles são largos e longos, e a remoção das comunidades no entorno. Algumas [comunidades] são realocadas, outras têm muitas dificuldades, como é o caso dos índios Pipipã, já que um dos canais, o "eixo leste", atravessa o seu território e também a chamada Reserva Biológica da Serra Negra, em Pernambuco, que é uma das reservas biológicas mais antigas que nós temos no Brasil, criada na década de 50. Também está havendo muito problema, agora, na região da Paraíba e em outros estados devido à má indenização daquelas pessoas que estão sendo arrancadas de suas áreas para ceder espaço aos projetos.
* Há uma estimativa de quantas pessoas já foram removidas?
Nós não temos essa totalização porque o governo fala em 700 famílias, mas nós achamos que é muito mais. Como o espaço é muito amplo, e a gente não tem uma articulação total por onde passam os canais, não se consegue fazer uma estimativa real das populações impactadas. Mas só os Pipipãs, da Reserva Serra Negra, são mais de cinco mil pessoas. Então a gente sabe que, direta ou indiretamente, o impacto é muito maior do que aquele que o governo alega que vai ter.
* Qual o atual estágio de revitalização do rio, que havia sido prometida?
A revitalização é como a gente sempre achou. Ela sempre foi, na visão do governo, uma espécie de moeda de troca, uma espécie de "cala-boca" para a população que resistia à transposição no sentido de dizer "nós vamos fazer a revitalização". Mas a gente sabe que ela nunca teria o mesmo vulto de investimentos que está tendo a própria obra da transposição. Hoje até a grande mídia já percebe que os investimentos destoam muito do que se investe na revitalização e do que se investe na transposição. Eu acho que se eles fizerem a transposição, nesse momento a revitalização vai ser abandonada, porque só estão fazendo alguma coisa no sentido de compensar politicamente, e nem tanto do ponto de vista ambiental, o ônus que é fazer a obra da transposição.
Está sendo feita uma espécie de saneamento aqui no Vale do São Francisco e em outros municípios, e isso é muito importante. Mas como não está concluído, não se tem noção ainda da qualidade desse saneamento. A gente não sabe se vai ser feito o tratamento do esgoto coletado nas cidades antes de ser jogado no rio, a gente não tem certeza disso. Esse é o único aspecto, digamos assim, visível e relevante, que se tem da revitalização do São Francisco. Todas as demais reivindicações, como cessar a implementação de obras grandiosas e rever toda a questão do agronegócio no oeste baiano, a remarcação dos territórios indígenas e quilombolas no Vale do rio São Francisco e água para as populações de toda a região Nordeste, isso tudo é muito frágil no processo de revitalização.
* Tu já te referiste ao Nordeste como um laboratório para a mercantilização da água no Brasil. Como seria o papel da transposição dentro dessa experimentação?
Na verdade, a transposição é a criação de um poderoso mercado de água. O mecanismo de funcionamento da transposição vai ser assim: uma espécie de empresa vai vender água do São Francisco e, quando a água cair nos outros estados receptores, outras empresas vão comprar essa água. Depois essas empresas vão vender [a água] para os chamados usuários, que ainda são outras empresas, para depois chegar no consumidor final. Todo mundo vai ganhar dinheiro, vai vender água e vai comprar água. Então o processo final e o custo final dessa água vão ser caríssimos.
Pessoalmente eu acho que o mais grave é que eles [empresas] vão comprar água do São Francisco mas vão se apropriar gratuitamente da água de chuva estocada nos grandes açudes. Então eles vão vender não só a água do São Francisco, mas vão vender também a água de chuva das grandes barragens. Vai ser um grande negócio, você vai comprar água ou receber água gratuitamente e revender para as populações. Nesse sentido, segue aquilo que o Banco Mundial sempre quis, que é criar os mercados de água no Brasil. Isso é proibido por lei mas, na prática, a transposição do São Francisco cria esse mercado. É a filosofia internacional da mercantilização da água.
E esse sistema de gerenciamento de recursos hídricos que está sendo implantado no Brasil veio da França, mas se você for para outros países da América Latina ou outros lugares, você vai ver que é o mesmo sistema. É o sistema que esses organismos multilaterais quiseram implantar em todos os lugares do mundo porque você disciplina o uso da água através de mecanismos onde as empresas ou compram os mananciais ou recebem outorgas, licenças do Estado para poder explorar aquele manancial. No Brasil a água não pode ser privatizada, mas o Estado pode conceder o uso da água para uso privado, e é o que vai acontecer no Vale do São Francisco. Empresas vão comprar essa água e poder explorar comercialmente.
* E como está a mobilização da população do semi-árido em relação à transposição?
A resistência maior hoje em dia está na Paraíba e no Ceará. É significativo o fato de prefeitos da Paraíba terem saído da luta pró-transposição porque perceberam que a transposição leva água para a Paraíba mas não distribui água. No Ceará, existem resistências das populações que estão sendo realocadas e deslocadas pelas obras da transposição. Sobretudo, acho que essa resistência vai crescer na medida em que as grandes promessas do governo não forem cumpridas. O governo promete água para 12 milhões na Paraíba, no Ceará e no Rio Grande do Norte. Só que essas pessoas criaram uma expectativa de que elas vão ter água e, quando a água da transposição chegar, vão ver que não vai para as populações. Então, o governo vai enfrentar um outro nível de conflito, que é realmente a finalidade principal dessa água. Ela tem uma finalidade econômica, mas a população foi instrumentalizada. Eu sei com segurança, por conversas que, dentro do governo, tem muita gente preocupada com essa possibilidade concreta. Inclusive falam que estão angustiados porque a obra da transposição não distribui água, ela apenas transfere água das bacias do São Francisco para as bacias do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte que já têm água.
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